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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nada de novo sob o sol 20




Bastiana gritava para Nena parar de correr; a menina estava sapeca, falando tudo e deixando os pais cada dia mais encantados. Ela estava mais e mais graciosa, pronunciando as palavras cheias de erros, sempre agitada e feliz.  Acabava de cruzar o portão da casa, deixando a mãe alguns passos atrás.
-Nena, você vai apanhar. Não falei pra não soltar da minha mão?
-Não.
-Falei, sim senhora! Não faça mais isso!
 Bastiana segurou um risinho; aquela menina era levada demais! Lembrou-se do quanto havia resistido à ideia de adotá-la dois anos atrás, e agora – que Deus a perdoasse - sentia mais amor pela caçula do que pela sua filha de sangue. Coisa de afinidade, mesmo. Fazer o quê?
-Passou toda a roupa?
-Oi, mãe, ainda não terminei.
-Você está parecendo uma tartaruga, igualzinha à da dona Terezinha.
-Credo, mãe, eu já vou terminar. Posso dar uma bala pra Nena?
-Bala? Que bala?
-O Miguel trouxe bala. Posso dar pra ela?
-Claro que não. Ela é muito pequena pra isso. Ele veio aqui?
-Veio, e trouxe bala. Ele é bonzinho.
-Não quero que você fique pegando bala de ninguém. Entendeu? Entendeu, Carmo?
-Sim, senhora.
Enquanto fazia careta por trás da mãe, Carmo pensava que não existia no mundo mãe mais chata que a dela.

Nada de novo sob o sol 19


-Pegue, são pra você.
-Pra mim?
-É, pegue, não precisa ter vergonha.
Carmo pegou o punhado de balas, feliz da vida. Ela só ganhava balas quando  frei  Alfons mandava, junto com alguma carne que ele mesmo preparava. Esses dias tinham gostinho de festa.
-Não quis sair hoje com sua  mãe?
-É que ainda ficou muita roupa pra passar, aí eu fiquei pra ir adiantando, senão minha mãe não dá conta.
-Deve ser chato passar roupa, não é?
-Eu gosto, não acho chato não.
-Mas aposto que preferia estar brincando.
-É.
-Nunca vejo você brincando. Não gosta de brincar?
-Gosto sim. 
Carmo estava incomodada com aquela conversa. Miguel nunca havia entrado na casa dela, e justo hoje que a mãe e Nena haviam saído, ele apareceu. Mas era bonzinho aquele moço. Lembrava o tio Manoel.
-Você tem bonecas?
-Não, mas bem que gostaria.
-Quando é seu aniversário?
-Dia 8 do mês que vem.
-Está pertinho. Por que não pede uma pro seu pai?
-Tadinho do meu pai; o dinheiro não dá pra isso, não.
-Bom, vou indo. Se quiser mais bala, é só ir lá no quartinho. Até mais ver.
-Até.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Nada de novo sob o sol 18

Não demorou muito para que Miguel – esse era o nome do inquilino – arrumasse um emprego. Como não tinha qualificação, aceitou trabalhar como pintor de paredes, e serviço não faltava. Trabalhava até às 16h, e depois ia para seu quartinho, onde também fazia as refeições. As poucas vezes que encontrava os donos da casa era quando ia usar o banheiro e algum deles estava pelo quintal. Parecia um moço pacato, embora Bastiana o tivesse flagrado algumas vezes com forte cheiro de álcool. No entanto, pagava o aluguel em dia, e isso era o que importava. Desde que ele fora para lá, estava dando para viver de uma maneira menos apertada.
Bastiana continuava lavando roupa para fora, e quase todas as tardes saía, às vezes para pegar as roupas, outras vezes para entregá-las. Quase sempre Carmo ia junto, assim ajudava a mãe e ainda podia passear um pouquinho. Um dia, enquanto Bastiana estava no tanque, acompanhada de Nena que  brincava na terra, ouviu um choro, que percebeu ser da filha. Correu para dentro e encontrou a menina em pé, as mãos sujas de sangue, chorando sem parar. Bastiana percebeu imediatamente o que acontecera.
-Por que esse escândalo?
-Eu tô sangrando, mãe. Juro que não fiz nada. Tá doendo muito minha barriga!
-Isso é normal, Carmo. Toda mulher tem.
-Como assim?
-Você virou mulher. Agora todo mês vai sangrar. Vou pegar um paninho pra você enquanto toma banho.
-Mas eu vou ficar assim pra sempre?
-Daqui uns 4 dias pára, Carmo. Não precisa fazer drama. Agora vá tomar banho.
Enquanto Carmo tomava banho, a mãe pegava a roupa suja e a lavava no quintal. Enquanto isso, dois olhos espiavam pela porta do quartinho, sem serem notados.

Nada de novo sob o sol 17


Os Roubos da Allemanha
“A Allemanha pagara caro os seus crimes, os seus grandes crimes cometidos contra as cidades inimigas que invadiu. A Germania, como um Attila maldito, quebrou sob ao tacão brutal obras de arte de quantas cidades se apossou, mas das obras, é claro, que não pode transportar à pátria do Marechal dos Pregos. Mas agora, vencida e humilhada, é agarrada como uma ladra vulgar pelos aliados e, uma a uma restitue ao seu dono os quadros celebres que roubou, os valores que extorquiu...O kaiser, hoje Conde Guilherme, refugiado covardemente em terras da Hollanda altiva e neutra, sofre já moramente as consequências de sua megalomania, mas ainda receberá physicamente as penas a que fez jus...O kaiser que espere o premio dos seus crimes infamantes. O mundo já o julgou, a Inglaterra vae executar a sentença.”
Bastião entrava na sala bem na hora em que frei Alfons jogava o exemplar do jornal Cruzeiro do Sul sobre a mesa, gritando uma série de impropérios em alemão. Já estava voltando silenciosamente para a cozinha, quando o frei o chamou.
-Já arrumou alguém pra morar no quartinho?
-Não senhor, frei. A Bastiana falou com umas vizinhas lá, e quando alguém souber de algo vai avisar.
-Pois eu soube de um rapaz que está vindo do Paraná e não tem onde morar. A tia veio falar comigo; parece que ele queria morar com ela, mas a casa é pequena e não vai dar para ela abrigá-lo. Quando ele chegar, mando falar com você.
-Tá certo, frei. Deus abençoe.
Foi na semana seguinte que o rapaz apareceu. Aparentava ter seus 28, 29 anos. Solteiro, disse ter ido procurar emprego, mas  tinha umas economias para pagar pelo aluguel enquanto procurava alguma coisa. Bastião pediu permissão ao padre pra sair mais cedo e mostrar o quartinho ao rapaz. Bastiana lavava a roupa no quintal quando eles chegaram. Carmo estava em seu quarto guardando umas peças de roupa que acabara de passar. O rapaz cumprimentou Bastiana e entrou no quartinho. Não havia grande coisa pra se ver – era um quarto de 3mx3m, com parede chapiscada e nenhum móvel. Ele resolveu ficar – apesar da simplicidade, ele não tinha recursos pra pagar por algo melhor.

Nada de novo sob o sol 16


-Nossa, como você está peituda! Tá parecendo a minha mãe!
- Ai, Lúcia, não exagera! Mas está dando pra ver, assim?
-Só não vê quem for cego...invejinha de você, sabia?
- Inveja? Eu odeio! Queria ser reta como uma tábua. Parece que todo mundo está olhando...
- E deve estar, mesmo. Se você juntar os dois  forma até um reguinho, não forma?
-Credo, Lúcia, pare com isso! Não tem graça!
-Ai, deixe eu te falar: tem um moço lindo morando na minha rua, agora! Moreno, de cabelo cacheado e olho preto. Trabalha num cartório. Coisa mais linda do mundo!
-Vê se toma vergonha na cara, Lúcia. Uma pirralha já olhando pra homem! Você é muito nova pra isso!
-Ah, e você não é? Nós temos a mesma idade, esqueceu?
-E quem disse que eu olho pra homem, Lúcia? Credo, dá até nojo só de pensar!
-Pois eu já gosto de olhar, sim senhora. Ainda mais pra aquele que é uma belezura!
Bastiana aparece na porta e passa um pito nas duas, que estão papeando enquanto deveriam estar ajudando no almoço. Carmo passa a mão no escapulário, que usava todos os dias, e as duas vão pra cozinha, rindo gostoso como fazem as meninas de 11 anos.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Chet Baker



Chesney Henry  Baker Jr. – Chest Baker –  foi um trompetista de jazz e cantor norte-americano, nascido em Oklahoma em 23/12/1929.
Criado até os dez anos numa fazenda, parte para Los Angeles no final dos anos 30, quando começa a estudar teoria musical. Chet Baker sempre foi influenciado por seu pai, guitarrista, de quem herdou a paixão pela música e de quem ganhou, aos 10 anos de idade, um trombone. Amante do Jazz, não tardou em conquistar o sucesso, sendo apontado como um dos melhores trompetistas do gênero logo em seu primeiro disco. Sua linda trajetória musical, no entanto, via-se constantemente ameaçada por um  vício que permeou toda sua vida – a heroína.
Baker morreria em Amsterdã, de forma trágica e misteriosa, na madrugada de 13 de Maio de 1988, quando despencou da janela do hotel. Até hoje existem muitas controvérsias sobre a causa de sua morte: suicídio ou acidente?
Chet foi enterrado no "Inglewood Park Cemetery", em Los Angeles.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 15

Carmo acordou alegre aquele dia: iriam receber a visita da tia Terezinha, do tio Manoel e dos primos. Desde que Nena viera morar com eles, todos estavam loucos para  conhecê-la, mas o dinheiro era pouco, e o  trabalho, muito.  Como Carmo gostaria de saber escrever para contar para Lúcia tudo o que ia em seu coração! Sabia de pessoas que se falavam por cartas, e achava isso incrível!  Mas, como era menina, os pais não viam motivo algum para mandá-la à escola. Realmente, só conhecia duas meninas que sabiam ler e escrever:  a Paulina e a Rosa. As duas tinham aprendido porque tinham  irmãos, e eles as ensinaram de tanto que elas insistiram. Queriam tanto aprender que conseguiram rapidinho. Paulina uma vez contou que estava lendo escondido um livro do irmão... se os pais soubessem, ela estaria perdida.
Absorta nesses pensamentos, Carmo ia penteando os cabelos e olhando-se no espelho. No último ano, seu corpo tinha mudado muito: as coxas engrossaram, a cintura afinou, e os seios começavam a aparecer. Como morria de vergonha que percebessem, andava com os braços cruzados quase o tempo todo. Suas vizinhas ainda tinham corpo de criança, e Carmo as invejava por não terem que se esconder das pessoas. Uma vez, tentara falar com a mãe a respeito, mas Bastiana apenas disse: “ Isso não é assunto pra criança”. Carmo quase morreu de vergonha e, com o rosto queimando, jurou nunca mais falar sobre isso com a mãe. Mas com Lúcia falaria; embora ela fosse sua “filhinha”, tinha quase sua idade e, quem sabe, já estivesse passando por isso também.
Carmo chegou na cozinha na hora exata em que Bastiana passava um sermão em Bastião; estava quase na hora da visita chegar, e ele estava metido em seu serviço de pedreiro. Há um mês, havia tido a ideia de construir um quartinho do lado de fora da casa, ao lado do banheiro, para poder alugar e ganhar um dinheiro. Frei Alfons estava ajudando com o material. Todo dia,  ao chegar do trabalho, ele vestia sua roupa mais surrada e lá ia fazer cimento e assentar tijolos.  Bastião entrou todo sujo pela cozinha, e levou mais uma bronca, bem merecida, por sinal. Carmo e a mãe tinham passado o dia anterior inteiro deixando a casa limpa e acolhedora para a visita. Tinham até colhido algumas azaleias do jardim de Bastião e colocado dentro de um vidro de leite vazio para enfeitar a sala. Pena que não houvesse lugar para todos se sentarem. Mas isso não era problema: os adultos ficariam nos bancos, as crianças ficariam no chão.
Mal Bastião saía de seu banho fajuto, os parentes bateram palmas no portão. Carmo saiu correndo, Bastiana foi atrás com Nena nos braços. Enquanto Zinha carregava Nena e falava daquele jeito engraçado que falamos com bebês, tio Manoel apertava as bochechas de Carmo, dizendo: “Bastianinha, como você cresceu!”  Os meninos e Lúcia estavam muito envergonhados – era a primeira vez que saíam de casa para uma visita em outra cidade. Os corações estavam aos pulos. Enquanto Paulo e Lúcia pareciam assustados, Manoelzinho falava sem parar, contando  como havia sido emocionante a viagem de ônibus. Então Bastiana disse:
- Vamos entrar. Ou vamos ficar conversando  no portão, feito comadres?

domingo, 12 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 14

Nena crescia gordinha e feliz, e a vida seguia como tinha que seguir. O aniversário de um aninho se aproximava, e Bastiana quis fazer uma festinha, convidando o frei, o casal que havia ajudado com o leite e o pai de Nena. Carmo, embora estivesse feliz, não conseguia entender por que nunca ganhara uma festinha. Mas sabia que esse era um sentimento feio, e procurou enterrá-lo no fundo do coração. Tratou de ajudar a mãe a bater o bolo e rechear os pãezinhos.
O pai de Nena era um homem muito fechado. Quando soube que a filhinha tinha saúde e estava bem cuidada, foi conhecê-la. Ela já tinha 7 meses. Então, começou com uma conversa de cerca-lourenço, dando a entender que poderia ficar com a filha. Bastião e Bastiana ficaram indignados – como alguém pode tratar um filho assim? Ninguém iria tirar Nena deles, não agora que já a amavam tanto. Então, Bastiana prometeu que ele poderia visitá-la quando quisesse, o que não aconteceu mais  até o aniversário. 
No dia da festa, Carmo segurava Nena no colo quando o pai chegou. O clima ficou pesado, porque aquele homem trazia medo e insegurança  àquela família. Frei Alfons, embora não gostasse dele, quebrou o gelo inicial.
_Ora, ora, se não é nosso amigo Augusto.
_Boa tarde,  frei. Sua bênção.
_Deus te abençoe, meu filho. Não tem comida nesta casa?
Então, todos se sentaram e começaram a conversar. O casal do leite era o que mais falava, principalmente a mulher – apertou as bochechas de Nena, mexeu nos cabelos de suas irmãs, elogiou o bolo, perguntou da irmã de Bastiana; assunto não lhe faltava. Então, quando houve uma brecha na conversa, Augusto anunciou que estava se mudando para o Rio de Janeiro. A respiração dos anfitriões ficou suspensa por um tempo. Estaria ele querendo levar Nena consigo? Ninguém tinha coragem de perguntar. Carmem e Clarinda brincavam com ela agora, e pareciam felizes. Teria ele coragem de fazer isso? Bastião percebeu as bochechas coradas do frei, e percebeu que ele não permitiria que isso acontecesse.  O suspense durou até a hora em que Augusto levantou-se e, chamando as filhas, despediu-se cerimoniosamente de todos.
Carmo respirou aliviada mas, sem esperar, sentiu uma saudade apertada do avô que falecera há 4 meses. Duas lágrimas frias rolaram de seus olhos.

Nada de novo sob o sol 13

Helena já estava com 2 meses, e crescia saudável. De bebê franzino e frágil, transformara-se numa fofura cheia de gominhos. Tinha a pele clara, cabelos escuros e um furo no queixo igualzinho ao de Angelina. Carmo colocava o dedo no furinho e dizia: você nasceu com defeito de fabricação! – e caía na gargalhada. Embora sentisse um grande carinho pela irmãzinha, tinha ciúme da maneira como a mãe a tratava. Bastiana, que sempre fora dura com Carmo, agora era toda carinhos com Nena – apelido dado pela irmã. Não dava nem para acreditar que a mãe mudara tanto de ideia; quando o pai chegara com a notícia, a mãe havia feito um escândalo e dito que Bastião só podia estar louco. Viviam com tão pouco que Bastiana dava graças a Deus por não ter podido mais ter filhos. Até o dia em que o frei a chamou à igreja e lá, perante o altar, teve uma séria conversa com ela, dizendo que nada faltaria à menina, e apelando para seu dever cristão. Bastiana, totalmente a contragosto, e mais por medo de ir ao inferno do que por qualquer dever cristão, acabou cedendo ao apelo do padre.  As pessoas da paróquia ajudaram no que puderam: um vizinho fornecia o leite, outros fizeram o enxovalzinho, e assim Helena foi acolhida. Com o passar dos dias, Bastiana foi se apegando àquela criaturinha, assim como Bastião e Carmo, como se ela fosse deles. O trabalho aumentou bastante, porque não é fácil cuidar de um bebê, mas Carmo ajudava a mãe como gente grande. A vida ganhou um novo colorido.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 12

Enquanto arrancava algumas  folhas secas, Bastião  conversava com o arbusto-borboleta como quem conversa com um velho amigo. No momento, comentava como as pessoas não tinham mais paciência de ouvir os outros. E ia começar a dar um exemplo quando foi interrompido pela chegada de frei Alfons ao portão. Pela vermelhidão na bochecha do pároco, era melhor não conversar com ele. Apesar da pouca instrução, Bastião sabia exatamente reconhecer os humores do patrão, e manter-se à distância era o mais saudável no momento.  
Depois de terminar o jardim, ele foi fazer um reparo no banheiro da igreja, e passou lá o restante do dia. Já se preparava para ir embora, e estava dando uma “última prosinha com Deus”, como dizia,  quando ouviu a voz do frei ao seu lado no banco:
_ Já está indo?
_Sim, senhor, frei. O senhor quer mais alguma coisa?
_Quero sim. Quero conversar com você.

Bastião caminhava para casa sem prestar atenção ao caminho. Tinha tomado uma decisão. Iria ter coragem, uma vez na vida, de decidir algo sozinho. Mesmo que Bastiana não quisesse. Ia ser “homem”. E pronto! Imaginou-se chamando-a  para conversar; podia vê-la dizendo que ele era louco, não tinha juízo, não estava ” bom das ideias”... sentiu  cansaço só de imaginar o que estava por enfrentar. Bastiana tinha paciência de ouvir as reclamações das vizinhas, e até dava conselhos. Mas bastava Bastião abrir a boca para ela lhe dizer  que ele não era lá um homem de decisões acertadas. E Bastião sempre cedia. No fundo, achava que ela tinha razão. Dessa vez, no entanto, sabia que aquilo era o melhor a fazer.
Ao cruzar a porta de casa, recebeu um abraço da filha, que era louca por ele. Olhou para Bastiana, que estava logo atrás,  e disse:
_Maria do Carmo ganhou uma irmãzinha.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 11


A roda dos enjeitados – ou roda dos expostos – surgiu no século XIII, em Roma. Toda vez que os pescadores jogavam a rede no rio Tibre, traziam não só peixes, mas também muitos corpos de bebês, que eram jogados por suas mães  assim que nasciam. Preocupado com essa situação, o Papa Inocêncio III incumbiu o frei Guy de Montpellier de criar um serviço em que essas crianças tivessem uma chance à vida.  Assim, frei Guy mandou abrir numa parede do Hospital do Espírito Santo  um buraco, e nele instalou uma caixa cilíndrica, em que a mãe podia depositar seu bebê sem ser identificada.  A roda dos enjeitados foi copiada pelo mundo, e foi por meio dela que  muitas crianças foram salvas.

 Frei Alfons era uma dessas crianças. Rejeitado pela mãe, que nunca soube quem era, e nem por que o abandonara, fora deixado na roda dos expostos de um convento da pequena cidade de  Bedburg.  Viveu naquele lugar até os 5 anos, quando então foi adotado por um casal sem filhos. A mãe adotiva, de saúde frágil, acabou morrendo 2 anos depois, deixando os dois homens sozinhos. O pai nunca mais quis casar-se, tendo Alfons como sua única companhia, até o dia em que o filho deixou a casa para entrar no seminário.  O pai, homem de princípios rígidos e durão, chorou naquele dia como uma criança. Sabia que, a partir dali, o filho seria da igreja, e não mais seu. Desde então só haviam se visto na ordenação e em mais três ocasiões, até que Alfons foi enviado ao Brasil. Um ano e meio depois, o pai falecia.
A história toda veio à tona no momento em que o frei colocou os olhos naquele berço. A solidão que um dia sentira na própria pele, ele podia adivinhar naquela criaturinha, totalmente indefesa e solitária. O medo, a angústia, a sensação de não pertencer ao mundo, tudo subiu-lhe novamente à garganta, e explodiu num choro silencioso. Rezou a oração de Santa Gertrudes e saiu caminhando em direção à casa do marido de Angelina.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 10

Frei Alfons não conseguia tirar o bebê de Angelina da cabeça. Será que ele tinha chances de nascer vivo? Se nascesse, teria herdado a doença da mãe? Pedindo perdão a Deus, pensava que o melhor seria que o bebê não vingasse.  Pobre criatura essa! Então, Lembrou-se das palavras do velho pai: ”Es hilft nicht, wenn wir auf dem falschen Weg laufen”  – “ De nada adianta correr, se estamos na estrada errada.”   Certamente essa era a estrada errada; aquela que deixa o coração falar mais alto que a razão. E ele era um homem prático – sempre fora. Pensando nisso, continuou arrancando as ervas daninhas que insistiam em nascer entre seus temperos; praguejou em alemão, porque assim o pecado era menor. Dirigiu-se para casa, levando uma bacia recheada de coentro, salsa, cebolinha, almeirão, 2 tomates e 1 limão. Iria preparar uma salada  köstlich para ele e Bastião, o que quer que isso significasse. Embora achasse o gosto horrível, o empregado sempre comia, em parte pela fome, em parte  para não fazer desfeita ao padre. Tinha vontade de pedir a ele que não colocasse o coentro, mas esse era justamente o tempero preferido do padre.
O frei lavava as folhas recém-colhidas, quando Bastião entrou com as mãos sujas de quem estava mexendo na terra:
_Frei, veio um menino aí falando que é pro senhor ir lá na Santa Casa que a irmã Catarina quer falar com o senhor.
Alfons respirou fundo; estava acostumado a ser interrompido no meio de suas atividades. Mas não podia reclamar – havia escolhido essa vida. Certamente seria um caso de extrema-unção. Enxugou as mãos no avental, pedindo a Deus paciência para sua missão. A fome teria que aguardar mais um pouco.
Em dez minutos chegava ao hospital. A recepcionista informou que a madre o aguardava próxima à ala dos leprosos. Teria Angelina sucumbido aos tormentos da doença e morrido? Avistando a madre, foi logo perguntando:
_Angelina?
_Sim, não aguentou. Sofreu demais a pobrezinha.
_Foi agora? Por que não me chamaram para dar a extrema-unção?
_Foi de madrugada, frei. Não quisemos acordá-lo.
_E agora, onde será enterrada essa coitada, meu Pai?
_Temos um problema bem maior, frei.
_Maior? E qual é?
_Nosso problema está nesse berço.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 9

Carmo estava sozinha em casa. Era agora uma mocinha, com quase 10 anos. Como a  pobreza não é muito amiga da infância, ela era obrigada a esquecer os próprios sonhos. O pai e a mãe tinham ido à casa de seu avô, para ver como ele estava, pois  já fazia uma semana que ele não aparecia por lá. Como morava sozinho, Bastiana logo imaginou que  ele poderia estar precisando de ajuda. Carmo queria ir junto, para poder passear um pouquinho, mas a mãe disse que alguém tinha que ficar para fazer o trabalho doméstico.  E aqui estava ela, varrendo a casa com lágrimas nos olhos, e pensando que feliz era a Júlia, uma menina que morava ao lado da igreja. No último Natal,  Carmo saía da missa quando a viu no portão carregando uma boneca. Ficou tão encantada com o “bebê” da menina que quase caiu ao tropeçar num canteiro. Embora tenha olhado por pouco tempo, tinha conseguido ver cada detalhe: o cabelo loiro cacheado, os olhos azuis como os de Lúcia, um chapéu de cetim  marrom amarrado com uma fita, e o vestido, todo rodado, azul, com babados da cor do chapéu. Desde então, cada dia antes de dormir, Carmo ficava sonhando em ter uma boneca também. E a levaria passear no quintal , faria chá pra ela, e contaria tudo aquilo que estivesse em seu coração. Já tinha até escolhido o nome para ela: Eunice.

Nada de novo sob o sol 8

_Deus esteja com você, Angelina.
_ Amém! Frei, eu quero ver minha meninas! _ O rosto contorcia-se num choro seco de lágrimas.
_Filha, você sabe que isso não é possível. Você quer que suas filhas fiquem doentes? Com certeza, não.
_Eu não aguento mais, não aguento mais..._ a voz ia sumindo.
Frei Alfons olhava aquela mulher, tão linda quando ia à missa, carregando as filhas cheias de babados e fitas,  transformada num ser repugnante. Era mesmo difícil olhar para seu rosto. O corpo se deteriorava, mas o espírito continuava vivo. Triste paradoxo aquele.  A barriga, bem grande, revelava que o parto estava próximo.
_Jesus  sofreu muito, Angelina, para nos mostrar que nós também vamos conseguir passar pelas piores provações.
_O senhor tem visto as meninas? Na missa, o senhor tem visto? Como elas estão? Cresceram, né?
_As meninas estão ótimas, minha filha. Fique em paz.
_ O que vai ser deste bebê, frei? Não vou poder tocá-lo, não é mesmo? Eles vão levá-lo pro meu marido e nem  vou vê-lo, não é mesmo?
Frei Alfons considerou que não seria apropriado contar àquela alma já tão atormentada que seu marido não iria ficar com o bebê; dizia ter medo que ele contagiasse a todos da casa.  Estava aí um grande problema a ser resolvido:  ninguém da família de Angelina queria aquele bebê, caso ele sobrevivesse - o que seria bem difícil de ocorrer.
_A cada dia, o seu fardo, minha filha. Não sofra mais do que deve. Vamos rezar?
_Não sei se quero rezar para um Deus que me afasta de quem  amo e me deforma mais a cada dia... _ o rosto contorcia-se novamente, numa dor que vinha da alma.
_A amargura não vai curá-la, filha. Só vai fazê-la sofrer mais. Pense nisso.
Aquelas palavras ficaram ecoando em seus próprios ouvidos: como convencer alguém naquele estado a sair da amargura e aceitar seu destino? Pensando nisso, Alfons virou-se para conversar com a outra mulher.

Nada de novo sob o sol 7

Frei Alfons chegou  à Santa Casa como fazia, religiosamente, toda 4ª. feira. Ao vê-lo, os funcionários costumavam dar uma olhada nos próprios relógios; se eles marcassem algo diferente de 8 horas, sabiam que tinham que acertá-los. O frei caminhou lentamente pelos corredores, até entrar na ala infantil – sempre começava por ela. Os casos eram os mais variados, e frei Alfons, apesar de se esforçar por parecer simpático, metia medo na maioria das crianças: seu corpo alto e branco, sua voz forte e seu sotaque pesado costumavam fazer alguns olhinhos se arregalarem de medo. Mas havia um garotinho ali que, ao vê-lo, já sorria – era Pedro, que praticamente morava no hospital , depois de sofrer uma queimadura provocada pela mãe. Sim, um dia a mãe dele  estava  derretendo banha; a  panela pegou fogo e, num reflexo, ela a  jogou  pela porta. Pedrinho  estava passando nesse momento, e teve quase o corpo todo queimado. Já estava em tratamento havia 2 anos, e ainda tinha um longo caminho pela frente.  Frei Alfons sempre trazia para ele algo para ler, o que aguçava ainda mais aquela imaginação sem limites.
Frei Alfons continuou em sua peregrinação pelo hospital; deu duas extrema-unções e viu, feliz, três pacientes receberem alta. Então, respirou fundo e rezou a Oração de Santa Gertrudes (sua santa de devoção)  pra encarar sua missão mais difícil: entrar na ala reservada para leprosos. Apesar de todos os conselhos médicos para não entrar naquela ala, o frei pensava em Jesus, lembrando-se de  Marcos 1,  40-42: “ Aproximou-se dele um leproso rogando-lhe, de joelhos: Se quiseres, podes purificar-me. Jesus, profundamente compadecido, estendeu a mão, tocou -o e disse-lhe: Quero, fica limpo! No mesmo instante, lhe desapareceu a lepra, e ficou limpo.” Ele sabia que suas mãos não iriam curar aquelas pobres criaturas, mas que, com sua palavra, podia trazer um pouco de conforto a seus corações. Passou por três portas e finalmente entrou num quarto com seis leitos. Havia nesse quarto apenas mulheres, quatro delas sentadas, uma andando para um lado e outro, e uma deitada. Essa, especialmente, causava piedade em frei Alfons: estando já em um estado adiantado da doença, sofrendo dores terríveis, trazia no ventre um bebê.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Ella Fitzgerald


A “Primeira Dama da Canção” nasceu em Newport News, no dia 25 de abril de 1917.  Notória pela pureza de sua tonalidade, sua dicção, fraseado e entonação impecáveis, também tinha uma  grande  habilidade de improviso .
Durante sua juventude Ella queria ser uma dançarina, embora gostasse de ouvir as gravações de jazz de Louis Armstrong,  Bing Crosby e The Boswell  Sisters e idolatrasse a cantora Connee Boswell.
De índole tímida, viveu para a música. Em 1993, afetada pelos problemas  causados pelo diabetes,  Ella Fitzgerald teve suas duas pernas amputadas. Morreu em 1996, em Beverly Hills, Califórnia, aos 79 anos de idade. Está enterrada no Inglewood Park Cemetery, em Inglewood. O material de arquivo da sua longa carreira está armazenado no Centro de Arquivos do Museu Nacional de História Americana, do Smithsonian.

Nada de novo sob o sol 6


Angelina tinha muito a fazer:  com a desconfiança – quase certeza – de que mais um bebê estava a caminho, precisava preparar o enxoval com capricho. Uma de suas maiores habilidades era bordar em ponto cruz. Quando saía com seus bebês –  Carmem,  com quase três anos, e  Clarinda, com um – todas as pessoas a elogiavam por seu capricho. E, como contava com uma ajudante em casa , tinha bastante tempo para bordar.
Sua vida era boa: embora o marido não fosse de conversar muito, e nem fosse carinhoso com ela e as crianças, não deixava faltar nada em casa. Para ela, era o que bastava. A única coisa que estava tirando seu sossego, ultimamente, eram umas manchas brancas que haviam aparecido em seu corpo. No início, logo que Carmem nasceu, ela notou uma pequena, entre o pescoço e o seio direito. Mas não deu importância. Só que o tempo foi passando e agora eram quatro, em diferentes partes do corpo.  Será que ela estaria com aquela doença que clareia a pele? Como era mesmo o nome? Lembrava-se de um menino que era chamado de Malhado pelas crianças da vizinhança. Vitiligo! Era esse o nome! Um arrepio percorreu seu corpo. Sabia que era bonita. Muito bonita: morena, cabelos longos e fartos, olhos amendoados e um furo no queixo que lhe dava um charme quase irresistível. Talvez por isso tenha se casado cedo: aos 16 anos, já era mãe. Agora, aos 19, poderia ter a mesma doença daquele menino, e talvez o marido não a quisesse mais. Talvez nenhum homem a quisesse mais. Procurou pensar em outra coisa.
O fogão ela mantinha aceso durante a maior parte do dia; sempre precisava  cozinhar ou esquentar algo para as meninas. Além disso, gostava de tomar um cafezinho várias vezes ao dia. Respirou fundo, colocou uma panela com água sobre o fogão e foi ver como estavam as meninas. Ficou olhando de longe - enquanto   a caçula  era ninada por sua ajudante,   Carmem já dormia gostoso. Seus olhos encheram-se de lágrimas por ser capaz de amar tanto. Sentia que morreria se ficasse longe de suas meninas.  Então, lembrou-se da água no fogo e foi passar o café. Enquanto colocava-o na xícara, no entanto, ouviu um choro alto e, na distração, derrubou café no braço, sobre uma das manchas. Estranhou o fato de não sentir dor, mas até achou bom. Foi atender Carmem, que acabava de acordar.

Nada de novo sob o sol 5


“Bastião, Bastiana, cadê a Bastianinha?”
Zinha tentou segurar o riso, mas foi inevitável. Era um homem bom, seu Manoel. Mas não tinha muita imaginação. Enquanto as irmãs e cunhados se abraçavam, Carmo corria beijar Lúcia, que era sua “ irmãzinha”, como ela dizia, apesar de haver apenas dez meses de diferença entre elas.  Manoelzinho e Paulo olhavam tudo com alegria, e não gostaram muito quando tiveram suas bochechas apertadas pelo tio. Enquanto os homens se acomodavam na sala e as crianças corriam para o quintal, as duas mulheres foram para a cozinha, onde Bastiana descarregou o que trouxe: o bolo, fofinho, e umas coisinhas que frei Alfons fez questão de doar:  um garrafão de suco de uva ,  uma massa de macarrão “preparrada” por ele e uns tomates.
Bastiana, apesar de ser amorosa, não era muito dada a carinhos, ao contrário de Bastião. Carmo sempre perguntava a ela por que não tinha irmãos, já que todos os amigos tinham . Bastiana simplesmente respondia: “Porque Deus não quis.” e encerrava o assunto. A relação entre as duas, na verdade, era um pouco complicada: Bastiana reclamava de tudo o que Carmo fazia, achava sempre que a menina podia fazer melhor.  Era justamente sobre isso que Bastiana falava agora com Zinha:
_ Bastiana, a Carmo é uma menina boa, ajuda você em tudo.
_ Sabe, Zinha, eu não sei, mas acho que nossos gênios não batem. Essa menina é muito difícil!
_ E você é fácil, né, irmã?
_ Fácil ninguém é! E você, como anda a vida?
_Indo, com dificuldade, mas indo. Os meninos estão bem, só o Paulo me preocupa. Tenho medo do que vai ser desse menino...
_É, você tem motivos pra se preocupar.
E, em meio a devaneios sobre a vida e o futuro, elas foram depenando as galinhas e preparando o almoço, que foi devorado duas horas mais tarde com um lamber de beiços sem fim. Se existia felicidade, era assim que ela era: com os parentes queridos, num almoço com direito a suco e  bolo de sobremesa!

Nada de novo sob o sol 4

Na  casa de Terezinha estavam todos agitados: Manoel já tinha matado duas galinhas e, como sempre, saíra correndo atrás das crianças com a cabeça de uma delas. Manoelzinho corria pelo quintal todo, seguido de Lúcia, que mais ria que corria. Paulo olhava aquilo e se divertia, acostumado que estava com suas limitações físicas. Quando tinha 2 aninhos,  teve uma meningite que quase o levara, e desde então carregava sequelas da doença.  Ele, no entanto, não se importava. A única coisa com a qual não se acostumava era ser chamado de troncho pelos meninos da rua. Mas um dia, um dia ele ainda ia ser doutor, e não ia admitir que ninguém o chamasse daquela forma.
Na cozinha,  Terezinha lavava umas verduras colhidas no quintal. Os móveis da casa toda eram feitos de caixas de verduras que Manoel recolhera em  suas andanças. A miséria era grande, e as dificuldades, muitas.  
Embora se sentisse feliz, de vez em quando Zinha fraquejava: trabalhava como empregada doméstica de segunda a sábado, e no domingo todo o serviço de casa a esperava. A patroa era uma espanhola muito brava, que não pensava duas vezes antes de humilhá-la; o marido, por sua vez, embora fosse um homem bom, gostava de tudo limpo e organizado.  Zinha achava que só iria descansar no dia em que morresse.  Enquanto lavava as verduras, o pensamento voou: imaginou a família chegando de Itu, e teve certeza da primeira coisa que o marido diria: “Bastião e Bastiana, cadê a Bastianinha?”  Sempre brincava com o fato dos cunhados terem o mesmo nome, e chamava Carmo de Bastianinha.
De repente, ouviu uma gritaria das crianças. Os três gritavam ao mesmo tempo: “Eles chegaram, eles chegaram”, numa euforia que fazia gosto.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 3

Bastiana estava atarantada: tinha levantado cedo, lavado a roupa de cama e a colocado para coarar.  Fazia questão de manter os lençóis branquinhos e cheirosos. O quintal, bem maior que a casa, tinha um gramado que Bastião cuidava pra que ela pudesse estica-los ensaboados pra receber o sol. A casa, humilde, Bastiana fazia questão de manter sempre arrumada e limpa. O chão, de tijolos, não era fácil de se manter limpo.  Embora tivesse apenas 7 anos, Carmo ajudava a mãe na casa como se fosse gente grande. A única coisa difícil para ela era passar roupa, porque seus braços magrinhos quase não conseguiam erguer o ferro. Ela mesma colocava a brasa, e fazia com muito cuidado, pois cansara de queimar as mãos nesse processo. A mãe deixava para ela as peças menores.
Depois de lavar a roupa, fazer a comida – com a maioria dos ingredientes colhidos no quintal, e uma galinha que o pai de Bastiana levara viva no dia anterior de presente – ela pediu à Carmo que lavasse a louça, enquanto ela batia um bolo para levar no dia seguinte à casa da irmã em Sorocaba. Bolo era uma raridade, lembrava festa, e Carmo não se cabia de alegria por viajar pra casa da tia. Eram muitas gostosuras: andar de ônibus, ver gente diferente,  encontrar a tia e os primos - que ela adorava e via muito raramente ...  Bastião quase nunca tinha férias, e o dinheiro mal dava pra passar o mês. Um passeio desses custava uns 3 meses de economia.  Então, aquela era uma ocasião realmente especial.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Marvin Gaye


 Marvin Pentz Gay  Jr.  nasceu em Washington, em 2 de abril de 1939. Foi um cantor popular de soul e R&B, arranjador, multi-instrumentista, compositor e produtor. Ganhou fama internacional durante os anos 60 e 70 como artista da gravadora Motown, com   sucessos como  "Stubborn Kind of Fellow", "How Sweet It Is (To Be Loved By You)", "I Heard It Through the Grapevine" e vários duetos com Tammi Terrell, incluindo "Ain't No Mountain High Enough" e "You're All I Need to Get By".
Gaye conseguiu o sucesso, mas nunca o reconhecimento e o  amor do pai, um pastor rígido, violento e ditador. Apegou-se profundamente à mãe, fonte de um amor incondicional, o que aumentava a fúria do pai .  Ele costumava dizer aos filhos: ” Da mesma forma que eu os trouxe ao mundo, posso tirá-los daqui.” Pessoa realmente excêntrica, Marvin Gay pai costumava vestir-se de mulher, o que fazia os filhos se sentirem ainda mais humilhados e confusos.  
Já famoso,  Gaye vicia-se em cocaína, e começa  a sofrer de delírios persecutórios. Compra  uma arma e a entrega  ao pai, para que o defenda  caso alguém queira  matá-lo. No dia 1º. de abril de 1984, após uma discussão entre os dois, o pai ironicamente  pega  essa mesma  arma e tira a vida de Gaye.  Cumpre-se, assim, a profecia familiar.

sábado, 7 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 2


Frei Alfons era um homem de princípios rígidos e riso contido. Ao acordar, fazia suas orações, tomava um banho gelado e sentava-se à mesa para tomar o café, que Sebastião já havia preparado - todos os dias, um ovo cozido e um café bem forte, sem açúcar. Bastião não conseguia entender "as esquisitices" do padre, mas  sua fé de homem simples o fazia servi-lo  com zelo e devoção. Já estava naquele emprego há muito tempo, desde que perdera a avó, único parente que conhecera neste mundo. Era um tipo de “faz-tudo”: preparava o café, consertava o que havia pra ser consertado,  mantinha a pintura da igreja, e o que mais gostava: cuidava do jardim. O jardim da casa paroquial era o mais lindo da cidade – pelo menos, era o que ele achava. Embora o espaço não fosse tão grande como ele gostaria, fez questão de cultivar as mais variadas flores  e folhagens; seu orgulho era um arbusto-borboleta, que fazia as senhoras da vizinhança darem uma paradinha cada vez que passavam a caminho do armazém ou de outro lugar qualquer. Havia um  ipê amarelo, que esperava a proximidade da primavera pra florir,  e um limoeiro que era o xodó do padre –  essa era a única parte do jardim que era cuidada por ele,  junto com um canteiro de ervas e temperos que ele chamava de “tesorros”, no seu português cheio de sotaque.
Frei  Alfons  gostava de sentar-se na varanda todo final de tarde e, às vezes, antes de dispensar Bastião, contava histórias de sua infância  em Bedburg, que Bastião não sabia onde ficava, mas sabia ser longe. Quando frei Alfons chegou,  Bastião estranhou o jeito sério; afinal, frei Antônio, o pároco anterior, era do tipo brincalhão e risonho. Conviveram diariamente durante quinze anos, até que uma pneumonia  levou o frei num dia triste de inverno. Bastião chorou como quem perde um pai.
 Então, um mês depois, enviaram frei Alfons.  No início, Bastião falava o indispensável com ele, temeroso de ser inadequado. Além disso, tinha uma dificuldade enorme de entender aquele jeito de falar todo enrolado. Bastiana o acalmava, e dizia que o tempo iria resolver as coisas. E resolveu; Bastião acabou se afeiçoando àquele homem grande e branco que nunca sorria. E  percebeu que, por trás daquela carranca, havia um grande coração.



sexta-feira, 6 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 1

Corria o ano de 1916. O frio congelava os ossos naquela manhã de junho. No dia anterior, a rádio anunciava que havia geado em todo o estado de São Paulo. A mãe tentava manter a  filha de 22 dias aquecida junto ao corpo, já que cobertor havia um só. Pelo menos essa vantagem a pobreza trazia: pais e filhos tinham que ficar juntinhos, para que se aquecessem mutuamente.
O dia já estava clareando, e Bastião acabava de se levantar. Deixava que a mulher dormisse, e ele mesmo preparava o café.  Tinha pena dela, que estava ainda cansada do parto complicado e dos cuidados todos que um bebê requer. Além disso, o serviço doméstico era puxado, e ele sabia que o dia da mulher seria longo, mais do que o seu.  Levantou-se e, com seu jeito bonachão, preparou-se para sair. Bastiana ouviu o barulho do marido  e, embora quisesse permanecer na cama, não conseguia. Sempre fora assim: uma vez de olhos abertos, estava em pé. Levantou-se a tempo de dar bom dia ao marido e vê-lo partir.
Pelos seus cálculos, ainda teria um tempo antes de Maria do Carmo acordar. Ela havia mamado fazia umas 3 horas. Respirou fundo e sentou-se à mesa, pensando em como sua vida havia mudado nos últimos meses: a gravidez não planejada, a gestação conturbada, o parto que quase a matara. Agora, tinha aquele embrulhinho sobre a cama, e tudo a assustava. Na verdade, desde que o bebê nascera ela não conseguia relaxar. Tudo a preocupava: se a filha chorava, se ficava muito quietinha... Lembrava-se sempre das palavras da mãe: "Bebê é como passarinho, numa hora está vivo, noutra está morto." Seria assim mesmo?
 De repente, um chorinho a trouxe de volta à realidade. Carmo havia acordado. Correu para o quarto, e encontrou sua filha com os olhos abertos, mas ainda perdidos na escuridão.  Pegou-a e percebeu que os panos que a enfaixavam do pescoço aos pés estavam encharcados. Despiu-a com cuidado, para que não sentisse muito frio, e a enrolou novamente. Sentia um amor que não sabia definir, nem de onde vinha. Só sabia que era bom.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Oscar Wilde

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Não quero fazer coisas que me prejudiquem, mas quero ter o direito de fazê-las. 
Saudade de quando ser adulto significava fazer as próprias escolhas...

sexta-feira, 4 de março de 2011

Clarice Lispector

Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Caio Fernando Abreu

Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu."

Dexter

Livros sobre sociopatas/psicopatas nunca chamaram minha atenção. Mas como toda pessoa ávida por leitura, acabei comprando Dexter, a mão esquerda de Deus e – surpresa – me apaixonei! Tratei de comprar os outros 2 títulos da série – Querido e Devotado Dexter e Dexter no Escuro, que devorei com a mesma rapidez do primeiro.

Dexter é um analista forense, especialista em respingos de sangue em cenas de crime (isso é especialização!). Na verdade, ele é muito bom no que faz. É querido pela maioria das pessoas, mas não consegue ter sentimentos. A única por quem “quase” chega a sentir algo é por sua irmã Debra, também policial.
Quando o filho era pequeno, o pai adotivo de Dexter, Harry (também policial) começa a estranhar o sumiço de alguns animais da vizinhança. Conhecendo a alma do filho, desenvolve com ele um método para transformar sua necessidade de matar em algo “positivo” – o "código de Harry", como o chamavam, rezava que Dexter só poderia matar aqueles que tivessem matado outras pessoas com crueldade e tivessem escapado da justiça. O pai de Dexter morre, mas o Código fica vivo dentro dele.
Dexter segue um rigor extremo em seus assassinatos, pois gosta de limpeza e organização. Retira de cada vítima uma gota de sangue, que guarda em lâminas escondidas em seu ar-condicionado. As cenas de tortura a que submete suas vítimas são atrozes, mas os crimes cometidos pelas agora “vítimas” nos fazem sentir um gostinho de justiça.
Os livros originaram a série Dexter. Assisti apenas à primeira temporada, e achei-a bastante fiel ao livro. Agora, acaba de chegar às livrarias o 4º. Livro – Dexter , Design de um Assassino. Minha próxima aquisição, com certeza!

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Nina Simone


Eunice Kathleen Waymon nasceu emTryon , em 21 de fevereiro de 1933 . Para tocar a "música do diabo", como o Blues era conhecido, adotou o nome de Nina Simone. Sofreu muito com o racismo  inerente à sua época, engajando-se na luta contra o mesmo.  Sua canção Mississipi Goddamn - que conta a história do assassinato de 4 crianças negras numa igreja- tornou-se um hino ativista da causa negra.
Passou de um lar repressor - os pais eram pastores metodistas , e não admitiam sua arte - para as mãos de um marido violento, que a agredia constantemente.
Nina passeou pelo gospel, soul, blues, folk e jazz  - e fomos nós que vimos belas paisagens. Em seu último DVD, seu mau-humor grita. Tudo parecia irritá-la: o som, a roupa, a plateia...no entanto, a quem é gênio, tudo é permitido...
Sua voz se calou  em  21 de abril de 2003, na cidade de Carry-le-Rouet.

Mario Quintana

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro que tinha um dia o próprio vento...

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Blues

Anotações sobre um escândalo

Pra quem procura no livro detalhes da história amorosa da professora inglesa de 41 anos com seu aluno de 15, o livro é decepcionante. Mas pra quem, como eu, adora uma história em que os aspectos psicológicos é que ditam o ritmo, o livro é perfeito.
Contado sob a ótica de Barbara, amiga de Sheba - a professora - o livro trata com muita sutileza o amor obstinado de uma mulher velha, dura e solitária por outra, jovem, pouco convencional, sofrida - Sheba tem um filho excepcional - e tudo que é capaz de fazer para tornar-se imprescindível na vida da outra - até mesmo tornar público o caso que esta mantém com seu aluno adolescente. É um livro denso, intenso e parcial, já que sabemos dos fatos através de Barbara - que, cá pra nós, é bem doentia. Baseado em uma história real.
Pra quem tiver interesse, há o filme, bastante fiel ao livro, que se chama Notas sobre um Escândalo, de 2006, com Judi Dench, Tom Georgeson, Michael Maloney, Joanna Scanlan.

Bobagens

Passei por uma  fase de ler bobagens. Sabe aqueles momentos em que você cansa de ser gente grande e quer ler só pelo prazer de ler? Estava assim.
Comprei 3 livros da Danielle Steel. Não, não tenho vergonha. Porque detesto aquele tipo de gente que faz pose e começa a listar todos os clássicos que leu/lê, se achando melhor que o resto da humanidade.
Eu sou assim - totalmente eclética. Tenho que fazer o que me dá prazer no momento. Mas, o que acontece é que, depois de ler muito, algumas coisas não descem mais. Li os 3 livros, mas devo dizer que foi quase uma penitência. 

Acho que estou crescendo...

A Pequena Moisi - Vera Fisher

Se você pensou em ler Vera, a pequena Moisi, um conselho: faça isso quando não tiver nada mais interessante pra fazer, como assistir à Sessão da Tarde ou a algum reality show, visitar a tia chata ou assistir a um campeonato de arremesso de aviõezinhos de papel.O livro é raso. E bota raso nisso. Vera intercala momentos da infância com reflexões (?) sobre o presente. Faz questão de enumerar as obras de arte que possui, os livros que já leu e os filmes aos quais assistiu, numa tentativa de mostrar uma pseudo-erudição. Tudo soa extremamente artificial e forçado. Nada de incursões ao mundo interior. Nada de linguagem trabalhada. Nada de nada.

O Conto do Amor

Romance de Contardo Calligaris, Companhia das Letras, 2008.


Em seu romance de estréia, Contardo prima pela precisão de detalhes, falando sobre arte e amor.
Ao barbear o pai em seu leito de morte, Carlo toma contato com algo que desconhecia: seu pai vivia num mundo paralelo. Paralelo e inusitado, já que se dizia ajudante do pintor maneirista Sodoma.
A partir daí, inicia uma busca pela própria identidade. É quando conhece Nicoletta, expert em Sodoma. Suas viagens de New York à Itália tornam-se freqüentes, até que todas as peças se encaixam.
Gostoso de ler, acredito que daria um bom filme. Recomendo!



P.S. Contardo anunciou, outro dia, via Twitter, que seu segundo livro está pra ser lançado. Contará a história de Carlo antes de  O Conto do Amor. Vou conferir, com certeza!

Microconto

"Fingia tanto que já não se lembrava como era de verdade. Procurando o caminho de volta, se perdeu também do fingimento, e deixou de existir. Hoje é um rosto em branco." 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Quando um Homem Ama uma Mulher

Romance de 1994, com Andy Garcia, Meg Ryan, Lauren Tom, Philip Seymour Hoffman. Direção de Luis Mandoki. Duração de 125 minutos.


Embora seja um filme com mais de 15 anos, é daqueles que a gente pode - e deve - assistir novamente de vez em quando, nem que seja apenas pra se emocionar. Apesar do título sugerir um filme com romance açucarado, o que se assiste é a deterioração de um relacionamento feliz por conta de um segredo de Alice (Meg) - o alcoolismo. Apesar de todo o amor de Michael (Andy) pela mulher, ele não enxerga seus problemas. Está sempre viajando a trabalho, enquanto a mulher naufraga numa infelicidade sem fim. 
As nuances e sutilezas da relação homem-mulher ganham destaque, e muitas vezes nos vemos como personagens da história.  Imperdível!