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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nada de novo sob o sol 20




Bastiana gritava para Nena parar de correr; a menina estava sapeca, falando tudo e deixando os pais cada dia mais encantados. Ela estava mais e mais graciosa, pronunciando as palavras cheias de erros, sempre agitada e feliz.  Acabava de cruzar o portão da casa, deixando a mãe alguns passos atrás.
-Nena, você vai apanhar. Não falei pra não soltar da minha mão?
-Não.
-Falei, sim senhora! Não faça mais isso!
 Bastiana segurou um risinho; aquela menina era levada demais! Lembrou-se do quanto havia resistido à ideia de adotá-la dois anos atrás, e agora – que Deus a perdoasse - sentia mais amor pela caçula do que pela sua filha de sangue. Coisa de afinidade, mesmo. Fazer o quê?
-Passou toda a roupa?
-Oi, mãe, ainda não terminei.
-Você está parecendo uma tartaruga, igualzinha à da dona Terezinha.
-Credo, mãe, eu já vou terminar. Posso dar uma bala pra Nena?
-Bala? Que bala?
-O Miguel trouxe bala. Posso dar pra ela?
-Claro que não. Ela é muito pequena pra isso. Ele veio aqui?
-Veio, e trouxe bala. Ele é bonzinho.
-Não quero que você fique pegando bala de ninguém. Entendeu? Entendeu, Carmo?
-Sim, senhora.
Enquanto fazia careta por trás da mãe, Carmo pensava que não existia no mundo mãe mais chata que a dela.

Nada de novo sob o sol 19


-Pegue, são pra você.
-Pra mim?
-É, pegue, não precisa ter vergonha.
Carmo pegou o punhado de balas, feliz da vida. Ela só ganhava balas quando  frei  Alfons mandava, junto com alguma carne que ele mesmo preparava. Esses dias tinham gostinho de festa.
-Não quis sair hoje com sua  mãe?
-É que ainda ficou muita roupa pra passar, aí eu fiquei pra ir adiantando, senão minha mãe não dá conta.
-Deve ser chato passar roupa, não é?
-Eu gosto, não acho chato não.
-Mas aposto que preferia estar brincando.
-É.
-Nunca vejo você brincando. Não gosta de brincar?
-Gosto sim. 
Carmo estava incomodada com aquela conversa. Miguel nunca havia entrado na casa dela, e justo hoje que a mãe e Nena haviam saído, ele apareceu. Mas era bonzinho aquele moço. Lembrava o tio Manoel.
-Você tem bonecas?
-Não, mas bem que gostaria.
-Quando é seu aniversário?
-Dia 8 do mês que vem.
-Está pertinho. Por que não pede uma pro seu pai?
-Tadinho do meu pai; o dinheiro não dá pra isso, não.
-Bom, vou indo. Se quiser mais bala, é só ir lá no quartinho. Até mais ver.
-Até.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Nada de novo sob o sol 18

Não demorou muito para que Miguel – esse era o nome do inquilino – arrumasse um emprego. Como não tinha qualificação, aceitou trabalhar como pintor de paredes, e serviço não faltava. Trabalhava até às 16h, e depois ia para seu quartinho, onde também fazia as refeições. As poucas vezes que encontrava os donos da casa era quando ia usar o banheiro e algum deles estava pelo quintal. Parecia um moço pacato, embora Bastiana o tivesse flagrado algumas vezes com forte cheiro de álcool. No entanto, pagava o aluguel em dia, e isso era o que importava. Desde que ele fora para lá, estava dando para viver de uma maneira menos apertada.
Bastiana continuava lavando roupa para fora, e quase todas as tardes saía, às vezes para pegar as roupas, outras vezes para entregá-las. Quase sempre Carmo ia junto, assim ajudava a mãe e ainda podia passear um pouquinho. Um dia, enquanto Bastiana estava no tanque, acompanhada de Nena que  brincava na terra, ouviu um choro, que percebeu ser da filha. Correu para dentro e encontrou a menina em pé, as mãos sujas de sangue, chorando sem parar. Bastiana percebeu imediatamente o que acontecera.
-Por que esse escândalo?
-Eu tô sangrando, mãe. Juro que não fiz nada. Tá doendo muito minha barriga!
-Isso é normal, Carmo. Toda mulher tem.
-Como assim?
-Você virou mulher. Agora todo mês vai sangrar. Vou pegar um paninho pra você enquanto toma banho.
-Mas eu vou ficar assim pra sempre?
-Daqui uns 4 dias pára, Carmo. Não precisa fazer drama. Agora vá tomar banho.
Enquanto Carmo tomava banho, a mãe pegava a roupa suja e a lavava no quintal. Enquanto isso, dois olhos espiavam pela porta do quartinho, sem serem notados.

Nada de novo sob o sol 17


Os Roubos da Allemanha
“A Allemanha pagara caro os seus crimes, os seus grandes crimes cometidos contra as cidades inimigas que invadiu. A Germania, como um Attila maldito, quebrou sob ao tacão brutal obras de arte de quantas cidades se apossou, mas das obras, é claro, que não pode transportar à pátria do Marechal dos Pregos. Mas agora, vencida e humilhada, é agarrada como uma ladra vulgar pelos aliados e, uma a uma restitue ao seu dono os quadros celebres que roubou, os valores que extorquiu...O kaiser, hoje Conde Guilherme, refugiado covardemente em terras da Hollanda altiva e neutra, sofre já moramente as consequências de sua megalomania, mas ainda receberá physicamente as penas a que fez jus...O kaiser que espere o premio dos seus crimes infamantes. O mundo já o julgou, a Inglaterra vae executar a sentença.”
Bastião entrava na sala bem na hora em que frei Alfons jogava o exemplar do jornal Cruzeiro do Sul sobre a mesa, gritando uma série de impropérios em alemão. Já estava voltando silenciosamente para a cozinha, quando o frei o chamou.
-Já arrumou alguém pra morar no quartinho?
-Não senhor, frei. A Bastiana falou com umas vizinhas lá, e quando alguém souber de algo vai avisar.
-Pois eu soube de um rapaz que está vindo do Paraná e não tem onde morar. A tia veio falar comigo; parece que ele queria morar com ela, mas a casa é pequena e não vai dar para ela abrigá-lo. Quando ele chegar, mando falar com você.
-Tá certo, frei. Deus abençoe.
Foi na semana seguinte que o rapaz apareceu. Aparentava ter seus 28, 29 anos. Solteiro, disse ter ido procurar emprego, mas  tinha umas economias para pagar pelo aluguel enquanto procurava alguma coisa. Bastião pediu permissão ao padre pra sair mais cedo e mostrar o quartinho ao rapaz. Bastiana lavava a roupa no quintal quando eles chegaram. Carmo estava em seu quarto guardando umas peças de roupa que acabara de passar. O rapaz cumprimentou Bastiana e entrou no quartinho. Não havia grande coisa pra se ver – era um quarto de 3mx3m, com parede chapiscada e nenhum móvel. Ele resolveu ficar – apesar da simplicidade, ele não tinha recursos pra pagar por algo melhor.

Nada de novo sob o sol 16


-Nossa, como você está peituda! Tá parecendo a minha mãe!
- Ai, Lúcia, não exagera! Mas está dando pra ver, assim?
-Só não vê quem for cego...invejinha de você, sabia?
- Inveja? Eu odeio! Queria ser reta como uma tábua. Parece que todo mundo está olhando...
- E deve estar, mesmo. Se você juntar os dois  forma até um reguinho, não forma?
-Credo, Lúcia, pare com isso! Não tem graça!
-Ai, deixe eu te falar: tem um moço lindo morando na minha rua, agora! Moreno, de cabelo cacheado e olho preto. Trabalha num cartório. Coisa mais linda do mundo!
-Vê se toma vergonha na cara, Lúcia. Uma pirralha já olhando pra homem! Você é muito nova pra isso!
-Ah, e você não é? Nós temos a mesma idade, esqueceu?
-E quem disse que eu olho pra homem, Lúcia? Credo, dá até nojo só de pensar!
-Pois eu já gosto de olhar, sim senhora. Ainda mais pra aquele que é uma belezura!
Bastiana aparece na porta e passa um pito nas duas, que estão papeando enquanto deveriam estar ajudando no almoço. Carmo passa a mão no escapulário, que usava todos os dias, e as duas vão pra cozinha, rindo gostoso como fazem as meninas de 11 anos.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Chet Baker



Chesney Henry  Baker Jr. – Chest Baker –  foi um trompetista de jazz e cantor norte-americano, nascido em Oklahoma em 23/12/1929.
Criado até os dez anos numa fazenda, parte para Los Angeles no final dos anos 30, quando começa a estudar teoria musical. Chet Baker sempre foi influenciado por seu pai, guitarrista, de quem herdou a paixão pela música e de quem ganhou, aos 10 anos de idade, um trombone. Amante do Jazz, não tardou em conquistar o sucesso, sendo apontado como um dos melhores trompetistas do gênero logo em seu primeiro disco. Sua linda trajetória musical, no entanto, via-se constantemente ameaçada por um  vício que permeou toda sua vida – a heroína.
Baker morreria em Amsterdã, de forma trágica e misteriosa, na madrugada de 13 de Maio de 1988, quando despencou da janela do hotel. Até hoje existem muitas controvérsias sobre a causa de sua morte: suicídio ou acidente?
Chet foi enterrado no "Inglewood Park Cemetery", em Los Angeles.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 15

Carmo acordou alegre aquele dia: iriam receber a visita da tia Terezinha, do tio Manoel e dos primos. Desde que Nena viera morar com eles, todos estavam loucos para  conhecê-la, mas o dinheiro era pouco, e o  trabalho, muito.  Como Carmo gostaria de saber escrever para contar para Lúcia tudo o que ia em seu coração! Sabia de pessoas que se falavam por cartas, e achava isso incrível!  Mas, como era menina, os pais não viam motivo algum para mandá-la à escola. Realmente, só conhecia duas meninas que sabiam ler e escrever:  a Paulina e a Rosa. As duas tinham aprendido porque tinham  irmãos, e eles as ensinaram de tanto que elas insistiram. Queriam tanto aprender que conseguiram rapidinho. Paulina uma vez contou que estava lendo escondido um livro do irmão... se os pais soubessem, ela estaria perdida.
Absorta nesses pensamentos, Carmo ia penteando os cabelos e olhando-se no espelho. No último ano, seu corpo tinha mudado muito: as coxas engrossaram, a cintura afinou, e os seios começavam a aparecer. Como morria de vergonha que percebessem, andava com os braços cruzados quase o tempo todo. Suas vizinhas ainda tinham corpo de criança, e Carmo as invejava por não terem que se esconder das pessoas. Uma vez, tentara falar com a mãe a respeito, mas Bastiana apenas disse: “ Isso não é assunto pra criança”. Carmo quase morreu de vergonha e, com o rosto queimando, jurou nunca mais falar sobre isso com a mãe. Mas com Lúcia falaria; embora ela fosse sua “filhinha”, tinha quase sua idade e, quem sabe, já estivesse passando por isso também.
Carmo chegou na cozinha na hora exata em que Bastiana passava um sermão em Bastião; estava quase na hora da visita chegar, e ele estava metido em seu serviço de pedreiro. Há um mês, havia tido a ideia de construir um quartinho do lado de fora da casa, ao lado do banheiro, para poder alugar e ganhar um dinheiro. Frei Alfons estava ajudando com o material. Todo dia,  ao chegar do trabalho, ele vestia sua roupa mais surrada e lá ia fazer cimento e assentar tijolos.  Bastião entrou todo sujo pela cozinha, e levou mais uma bronca, bem merecida, por sinal. Carmo e a mãe tinham passado o dia anterior inteiro deixando a casa limpa e acolhedora para a visita. Tinham até colhido algumas azaleias do jardim de Bastião e colocado dentro de um vidro de leite vazio para enfeitar a sala. Pena que não houvesse lugar para todos se sentarem. Mas isso não era problema: os adultos ficariam nos bancos, as crianças ficariam no chão.
Mal Bastião saía de seu banho fajuto, os parentes bateram palmas no portão. Carmo saiu correndo, Bastiana foi atrás com Nena nos braços. Enquanto Zinha carregava Nena e falava daquele jeito engraçado que falamos com bebês, tio Manoel apertava as bochechas de Carmo, dizendo: “Bastianinha, como você cresceu!”  Os meninos e Lúcia estavam muito envergonhados – era a primeira vez que saíam de casa para uma visita em outra cidade. Os corações estavam aos pulos. Enquanto Paulo e Lúcia pareciam assustados, Manoelzinho falava sem parar, contando  como havia sido emocionante a viagem de ônibus. Então Bastiana disse:
- Vamos entrar. Ou vamos ficar conversando  no portão, feito comadres?

domingo, 12 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 14

Nena crescia gordinha e feliz, e a vida seguia como tinha que seguir. O aniversário de um aninho se aproximava, e Bastiana quis fazer uma festinha, convidando o frei, o casal que havia ajudado com o leite e o pai de Nena. Carmo, embora estivesse feliz, não conseguia entender por que nunca ganhara uma festinha. Mas sabia que esse era um sentimento feio, e procurou enterrá-lo no fundo do coração. Tratou de ajudar a mãe a bater o bolo e rechear os pãezinhos.
O pai de Nena era um homem muito fechado. Quando soube que a filhinha tinha saúde e estava bem cuidada, foi conhecê-la. Ela já tinha 7 meses. Então, começou com uma conversa de cerca-lourenço, dando a entender que poderia ficar com a filha. Bastião e Bastiana ficaram indignados – como alguém pode tratar um filho assim? Ninguém iria tirar Nena deles, não agora que já a amavam tanto. Então, Bastiana prometeu que ele poderia visitá-la quando quisesse, o que não aconteceu mais  até o aniversário. 
No dia da festa, Carmo segurava Nena no colo quando o pai chegou. O clima ficou pesado, porque aquele homem trazia medo e insegurança  àquela família. Frei Alfons, embora não gostasse dele, quebrou o gelo inicial.
_Ora, ora, se não é nosso amigo Augusto.
_Boa tarde,  frei. Sua bênção.
_Deus te abençoe, meu filho. Não tem comida nesta casa?
Então, todos se sentaram e começaram a conversar. O casal do leite era o que mais falava, principalmente a mulher – apertou as bochechas de Nena, mexeu nos cabelos de suas irmãs, elogiou o bolo, perguntou da irmã de Bastiana; assunto não lhe faltava. Então, quando houve uma brecha na conversa, Augusto anunciou que estava se mudando para o Rio de Janeiro. A respiração dos anfitriões ficou suspensa por um tempo. Estaria ele querendo levar Nena consigo? Ninguém tinha coragem de perguntar. Carmem e Clarinda brincavam com ela agora, e pareciam felizes. Teria ele coragem de fazer isso? Bastião percebeu as bochechas coradas do frei, e percebeu que ele não permitiria que isso acontecesse.  O suspense durou até a hora em que Augusto levantou-se e, chamando as filhas, despediu-se cerimoniosamente de todos.
Carmo respirou aliviada mas, sem esperar, sentiu uma saudade apertada do avô que falecera há 4 meses. Duas lágrimas frias rolaram de seus olhos.

Nada de novo sob o sol 13

Helena já estava com 2 meses, e crescia saudável. De bebê franzino e frágil, transformara-se numa fofura cheia de gominhos. Tinha a pele clara, cabelos escuros e um furo no queixo igualzinho ao de Angelina. Carmo colocava o dedo no furinho e dizia: você nasceu com defeito de fabricação! – e caía na gargalhada. Embora sentisse um grande carinho pela irmãzinha, tinha ciúme da maneira como a mãe a tratava. Bastiana, que sempre fora dura com Carmo, agora era toda carinhos com Nena – apelido dado pela irmã. Não dava nem para acreditar que a mãe mudara tanto de ideia; quando o pai chegara com a notícia, a mãe havia feito um escândalo e dito que Bastião só podia estar louco. Viviam com tão pouco que Bastiana dava graças a Deus por não ter podido mais ter filhos. Até o dia em que o frei a chamou à igreja e lá, perante o altar, teve uma séria conversa com ela, dizendo que nada faltaria à menina, e apelando para seu dever cristão. Bastiana, totalmente a contragosto, e mais por medo de ir ao inferno do que por qualquer dever cristão, acabou cedendo ao apelo do padre.  As pessoas da paróquia ajudaram no que puderam: um vizinho fornecia o leite, outros fizeram o enxovalzinho, e assim Helena foi acolhida. Com o passar dos dias, Bastiana foi se apegando àquela criaturinha, assim como Bastião e Carmo, como se ela fosse deles. O trabalho aumentou bastante, porque não é fácil cuidar de um bebê, mas Carmo ajudava a mãe como gente grande. A vida ganhou um novo colorido.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Nada de novo sob o sol 12

Enquanto arrancava algumas  folhas secas, Bastião  conversava com o arbusto-borboleta como quem conversa com um velho amigo. No momento, comentava como as pessoas não tinham mais paciência de ouvir os outros. E ia começar a dar um exemplo quando foi interrompido pela chegada de frei Alfons ao portão. Pela vermelhidão na bochecha do pároco, era melhor não conversar com ele. Apesar da pouca instrução, Bastião sabia exatamente reconhecer os humores do patrão, e manter-se à distância era o mais saudável no momento.  
Depois de terminar o jardim, ele foi fazer um reparo no banheiro da igreja, e passou lá o restante do dia. Já se preparava para ir embora, e estava dando uma “última prosinha com Deus”, como dizia,  quando ouviu a voz do frei ao seu lado no banco:
_ Já está indo?
_Sim, senhor, frei. O senhor quer mais alguma coisa?
_Quero sim. Quero conversar com você.

Bastião caminhava para casa sem prestar atenção ao caminho. Tinha tomado uma decisão. Iria ter coragem, uma vez na vida, de decidir algo sozinho. Mesmo que Bastiana não quisesse. Ia ser “homem”. E pronto! Imaginou-se chamando-a  para conversar; podia vê-la dizendo que ele era louco, não tinha juízo, não estava ” bom das ideias”... sentiu  cansaço só de imaginar o que estava por enfrentar. Bastiana tinha paciência de ouvir as reclamações das vizinhas, e até dava conselhos. Mas bastava Bastião abrir a boca para ela lhe dizer  que ele não era lá um homem de decisões acertadas. E Bastião sempre cedia. No fundo, achava que ela tinha razão. Dessa vez, no entanto, sabia que aquilo era o melhor a fazer.
Ao cruzar a porta de casa, recebeu um abraço da filha, que era louca por ele. Olhou para Bastiana, que estava logo atrás,  e disse:
_Maria do Carmo ganhou uma irmãzinha.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 11


A roda dos enjeitados – ou roda dos expostos – surgiu no século XIII, em Roma. Toda vez que os pescadores jogavam a rede no rio Tibre, traziam não só peixes, mas também muitos corpos de bebês, que eram jogados por suas mães  assim que nasciam. Preocupado com essa situação, o Papa Inocêncio III incumbiu o frei Guy de Montpellier de criar um serviço em que essas crianças tivessem uma chance à vida.  Assim, frei Guy mandou abrir numa parede do Hospital do Espírito Santo  um buraco, e nele instalou uma caixa cilíndrica, em que a mãe podia depositar seu bebê sem ser identificada.  A roda dos enjeitados foi copiada pelo mundo, e foi por meio dela que  muitas crianças foram salvas.

 Frei Alfons era uma dessas crianças. Rejeitado pela mãe, que nunca soube quem era, e nem por que o abandonara, fora deixado na roda dos expostos de um convento da pequena cidade de  Bedburg.  Viveu naquele lugar até os 5 anos, quando então foi adotado por um casal sem filhos. A mãe adotiva, de saúde frágil, acabou morrendo 2 anos depois, deixando os dois homens sozinhos. O pai nunca mais quis casar-se, tendo Alfons como sua única companhia, até o dia em que o filho deixou a casa para entrar no seminário.  O pai, homem de princípios rígidos e durão, chorou naquele dia como uma criança. Sabia que, a partir dali, o filho seria da igreja, e não mais seu. Desde então só haviam se visto na ordenação e em mais três ocasiões, até que Alfons foi enviado ao Brasil. Um ano e meio depois, o pai falecia.
A história toda veio à tona no momento em que o frei colocou os olhos naquele berço. A solidão que um dia sentira na própria pele, ele podia adivinhar naquela criaturinha, totalmente indefesa e solitária. O medo, a angústia, a sensação de não pertencer ao mundo, tudo subiu-lhe novamente à garganta, e explodiu num choro silencioso. Rezou a oração de Santa Gertrudes e saiu caminhando em direção à casa do marido de Angelina.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 10

Frei Alfons não conseguia tirar o bebê de Angelina da cabeça. Será que ele tinha chances de nascer vivo? Se nascesse, teria herdado a doença da mãe? Pedindo perdão a Deus, pensava que o melhor seria que o bebê não vingasse.  Pobre criatura essa! Então, Lembrou-se das palavras do velho pai: ”Es hilft nicht, wenn wir auf dem falschen Weg laufen”  – “ De nada adianta correr, se estamos na estrada errada.”   Certamente essa era a estrada errada; aquela que deixa o coração falar mais alto que a razão. E ele era um homem prático – sempre fora. Pensando nisso, continuou arrancando as ervas daninhas que insistiam em nascer entre seus temperos; praguejou em alemão, porque assim o pecado era menor. Dirigiu-se para casa, levando uma bacia recheada de coentro, salsa, cebolinha, almeirão, 2 tomates e 1 limão. Iria preparar uma salada  köstlich para ele e Bastião, o que quer que isso significasse. Embora achasse o gosto horrível, o empregado sempre comia, em parte pela fome, em parte  para não fazer desfeita ao padre. Tinha vontade de pedir a ele que não colocasse o coentro, mas esse era justamente o tempero preferido do padre.
O frei lavava as folhas recém-colhidas, quando Bastião entrou com as mãos sujas de quem estava mexendo na terra:
_Frei, veio um menino aí falando que é pro senhor ir lá na Santa Casa que a irmã Catarina quer falar com o senhor.
Alfons respirou fundo; estava acostumado a ser interrompido no meio de suas atividades. Mas não podia reclamar – havia escolhido essa vida. Certamente seria um caso de extrema-unção. Enxugou as mãos no avental, pedindo a Deus paciência para sua missão. A fome teria que aguardar mais um pouco.
Em dez minutos chegava ao hospital. A recepcionista informou que a madre o aguardava próxima à ala dos leprosos. Teria Angelina sucumbido aos tormentos da doença e morrido? Avistando a madre, foi logo perguntando:
_Angelina?
_Sim, não aguentou. Sofreu demais a pobrezinha.
_Foi agora? Por que não me chamaram para dar a extrema-unção?
_Foi de madrugada, frei. Não quisemos acordá-lo.
_E agora, onde será enterrada essa coitada, meu Pai?
_Temos um problema bem maior, frei.
_Maior? E qual é?
_Nosso problema está nesse berço.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 9

Carmo estava sozinha em casa. Era agora uma mocinha, com quase 10 anos. Como a  pobreza não é muito amiga da infância, ela era obrigada a esquecer os próprios sonhos. O pai e a mãe tinham ido à casa de seu avô, para ver como ele estava, pois  já fazia uma semana que ele não aparecia por lá. Como morava sozinho, Bastiana logo imaginou que  ele poderia estar precisando de ajuda. Carmo queria ir junto, para poder passear um pouquinho, mas a mãe disse que alguém tinha que ficar para fazer o trabalho doméstico.  E aqui estava ela, varrendo a casa com lágrimas nos olhos, e pensando que feliz era a Júlia, uma menina que morava ao lado da igreja. No último Natal,  Carmo saía da missa quando a viu no portão carregando uma boneca. Ficou tão encantada com o “bebê” da menina que quase caiu ao tropeçar num canteiro. Embora tenha olhado por pouco tempo, tinha conseguido ver cada detalhe: o cabelo loiro cacheado, os olhos azuis como os de Lúcia, um chapéu de cetim  marrom amarrado com uma fita, e o vestido, todo rodado, azul, com babados da cor do chapéu. Desde então, cada dia antes de dormir, Carmo ficava sonhando em ter uma boneca também. E a levaria passear no quintal , faria chá pra ela, e contaria tudo aquilo que estivesse em seu coração. Já tinha até escolhido o nome para ela: Eunice.

Nada de novo sob o sol 8

_Deus esteja com você, Angelina.
_ Amém! Frei, eu quero ver minha meninas! _ O rosto contorcia-se num choro seco de lágrimas.
_Filha, você sabe que isso não é possível. Você quer que suas filhas fiquem doentes? Com certeza, não.
_Eu não aguento mais, não aguento mais..._ a voz ia sumindo.
Frei Alfons olhava aquela mulher, tão linda quando ia à missa, carregando as filhas cheias de babados e fitas,  transformada num ser repugnante. Era mesmo difícil olhar para seu rosto. O corpo se deteriorava, mas o espírito continuava vivo. Triste paradoxo aquele.  A barriga, bem grande, revelava que o parto estava próximo.
_Jesus  sofreu muito, Angelina, para nos mostrar que nós também vamos conseguir passar pelas piores provações.
_O senhor tem visto as meninas? Na missa, o senhor tem visto? Como elas estão? Cresceram, né?
_As meninas estão ótimas, minha filha. Fique em paz.
_ O que vai ser deste bebê, frei? Não vou poder tocá-lo, não é mesmo? Eles vão levá-lo pro meu marido e nem  vou vê-lo, não é mesmo?
Frei Alfons considerou que não seria apropriado contar àquela alma já tão atormentada que seu marido não iria ficar com o bebê; dizia ter medo que ele contagiasse a todos da casa.  Estava aí um grande problema a ser resolvido:  ninguém da família de Angelina queria aquele bebê, caso ele sobrevivesse - o que seria bem difícil de ocorrer.
_A cada dia, o seu fardo, minha filha. Não sofra mais do que deve. Vamos rezar?
_Não sei se quero rezar para um Deus que me afasta de quem  amo e me deforma mais a cada dia... _ o rosto contorcia-se novamente, numa dor que vinha da alma.
_A amargura não vai curá-la, filha. Só vai fazê-la sofrer mais. Pense nisso.
Aquelas palavras ficaram ecoando em seus próprios ouvidos: como convencer alguém naquele estado a sair da amargura e aceitar seu destino? Pensando nisso, Alfons virou-se para conversar com a outra mulher.