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sexta-feira, 27 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 11


A roda dos enjeitados – ou roda dos expostos – surgiu no século XIII, em Roma. Toda vez que os pescadores jogavam a rede no rio Tibre, traziam não só peixes, mas também muitos corpos de bebês, que eram jogados por suas mães  assim que nasciam. Preocupado com essa situação, o Papa Inocêncio III incumbiu o frei Guy de Montpellier de criar um serviço em que essas crianças tivessem uma chance à vida.  Assim, frei Guy mandou abrir numa parede do Hospital do Espírito Santo  um buraco, e nele instalou uma caixa cilíndrica, em que a mãe podia depositar seu bebê sem ser identificada.  A roda dos enjeitados foi copiada pelo mundo, e foi por meio dela que  muitas crianças foram salvas.

 Frei Alfons era uma dessas crianças. Rejeitado pela mãe, que nunca soube quem era, e nem por que o abandonara, fora deixado na roda dos expostos de um convento da pequena cidade de  Bedburg.  Viveu naquele lugar até os 5 anos, quando então foi adotado por um casal sem filhos. A mãe adotiva, de saúde frágil, acabou morrendo 2 anos depois, deixando os dois homens sozinhos. O pai nunca mais quis casar-se, tendo Alfons como sua única companhia, até o dia em que o filho deixou a casa para entrar no seminário.  O pai, homem de princípios rígidos e durão, chorou naquele dia como uma criança. Sabia que, a partir dali, o filho seria da igreja, e não mais seu. Desde então só haviam se visto na ordenação e em mais três ocasiões, até que Alfons foi enviado ao Brasil. Um ano e meio depois, o pai falecia.
A história toda veio à tona no momento em que o frei colocou os olhos naquele berço. A solidão que um dia sentira na própria pele, ele podia adivinhar naquela criaturinha, totalmente indefesa e solitária. O medo, a angústia, a sensação de não pertencer ao mundo, tudo subiu-lhe novamente à garganta, e explodiu num choro silencioso. Rezou a oração de Santa Gertrudes e saiu caminhando em direção à casa do marido de Angelina.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 10

Frei Alfons não conseguia tirar o bebê de Angelina da cabeça. Será que ele tinha chances de nascer vivo? Se nascesse, teria herdado a doença da mãe? Pedindo perdão a Deus, pensava que o melhor seria que o bebê não vingasse.  Pobre criatura essa! Então, Lembrou-se das palavras do velho pai: ”Es hilft nicht, wenn wir auf dem falschen Weg laufen”  – “ De nada adianta correr, se estamos na estrada errada.”   Certamente essa era a estrada errada; aquela que deixa o coração falar mais alto que a razão. E ele era um homem prático – sempre fora. Pensando nisso, continuou arrancando as ervas daninhas que insistiam em nascer entre seus temperos; praguejou em alemão, porque assim o pecado era menor. Dirigiu-se para casa, levando uma bacia recheada de coentro, salsa, cebolinha, almeirão, 2 tomates e 1 limão. Iria preparar uma salada  köstlich para ele e Bastião, o que quer que isso significasse. Embora achasse o gosto horrível, o empregado sempre comia, em parte pela fome, em parte  para não fazer desfeita ao padre. Tinha vontade de pedir a ele que não colocasse o coentro, mas esse era justamente o tempero preferido do padre.
O frei lavava as folhas recém-colhidas, quando Bastião entrou com as mãos sujas de quem estava mexendo na terra:
_Frei, veio um menino aí falando que é pro senhor ir lá na Santa Casa que a irmã Catarina quer falar com o senhor.
Alfons respirou fundo; estava acostumado a ser interrompido no meio de suas atividades. Mas não podia reclamar – havia escolhido essa vida. Certamente seria um caso de extrema-unção. Enxugou as mãos no avental, pedindo a Deus paciência para sua missão. A fome teria que aguardar mais um pouco.
Em dez minutos chegava ao hospital. A recepcionista informou que a madre o aguardava próxima à ala dos leprosos. Teria Angelina sucumbido aos tormentos da doença e morrido? Avistando a madre, foi logo perguntando:
_Angelina?
_Sim, não aguentou. Sofreu demais a pobrezinha.
_Foi agora? Por que não me chamaram para dar a extrema-unção?
_Foi de madrugada, frei. Não quisemos acordá-lo.
_E agora, onde será enterrada essa coitada, meu Pai?
_Temos um problema bem maior, frei.
_Maior? E qual é?
_Nosso problema está nesse berço.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 9

Carmo estava sozinha em casa. Era agora uma mocinha, com quase 10 anos. Como a  pobreza não é muito amiga da infância, ela era obrigada a esquecer os próprios sonhos. O pai e a mãe tinham ido à casa de seu avô, para ver como ele estava, pois  já fazia uma semana que ele não aparecia por lá. Como morava sozinho, Bastiana logo imaginou que  ele poderia estar precisando de ajuda. Carmo queria ir junto, para poder passear um pouquinho, mas a mãe disse que alguém tinha que ficar para fazer o trabalho doméstico.  E aqui estava ela, varrendo a casa com lágrimas nos olhos, e pensando que feliz era a Júlia, uma menina que morava ao lado da igreja. No último Natal,  Carmo saía da missa quando a viu no portão carregando uma boneca. Ficou tão encantada com o “bebê” da menina que quase caiu ao tropeçar num canteiro. Embora tenha olhado por pouco tempo, tinha conseguido ver cada detalhe: o cabelo loiro cacheado, os olhos azuis como os de Lúcia, um chapéu de cetim  marrom amarrado com uma fita, e o vestido, todo rodado, azul, com babados da cor do chapéu. Desde então, cada dia antes de dormir, Carmo ficava sonhando em ter uma boneca também. E a levaria passear no quintal , faria chá pra ela, e contaria tudo aquilo que estivesse em seu coração. Já tinha até escolhido o nome para ela: Eunice.

Nada de novo sob o sol 8

_Deus esteja com você, Angelina.
_ Amém! Frei, eu quero ver minha meninas! _ O rosto contorcia-se num choro seco de lágrimas.
_Filha, você sabe que isso não é possível. Você quer que suas filhas fiquem doentes? Com certeza, não.
_Eu não aguento mais, não aguento mais..._ a voz ia sumindo.
Frei Alfons olhava aquela mulher, tão linda quando ia à missa, carregando as filhas cheias de babados e fitas,  transformada num ser repugnante. Era mesmo difícil olhar para seu rosto. O corpo se deteriorava, mas o espírito continuava vivo. Triste paradoxo aquele.  A barriga, bem grande, revelava que o parto estava próximo.
_Jesus  sofreu muito, Angelina, para nos mostrar que nós também vamos conseguir passar pelas piores provações.
_O senhor tem visto as meninas? Na missa, o senhor tem visto? Como elas estão? Cresceram, né?
_As meninas estão ótimas, minha filha. Fique em paz.
_ O que vai ser deste bebê, frei? Não vou poder tocá-lo, não é mesmo? Eles vão levá-lo pro meu marido e nem  vou vê-lo, não é mesmo?
Frei Alfons considerou que não seria apropriado contar àquela alma já tão atormentada que seu marido não iria ficar com o bebê; dizia ter medo que ele contagiasse a todos da casa.  Estava aí um grande problema a ser resolvido:  ninguém da família de Angelina queria aquele bebê, caso ele sobrevivesse - o que seria bem difícil de ocorrer.
_A cada dia, o seu fardo, minha filha. Não sofra mais do que deve. Vamos rezar?
_Não sei se quero rezar para um Deus que me afasta de quem  amo e me deforma mais a cada dia... _ o rosto contorcia-se novamente, numa dor que vinha da alma.
_A amargura não vai curá-la, filha. Só vai fazê-la sofrer mais. Pense nisso.
Aquelas palavras ficaram ecoando em seus próprios ouvidos: como convencer alguém naquele estado a sair da amargura e aceitar seu destino? Pensando nisso, Alfons virou-se para conversar com a outra mulher.

Nada de novo sob o sol 7

Frei Alfons chegou  à Santa Casa como fazia, religiosamente, toda 4ª. feira. Ao vê-lo, os funcionários costumavam dar uma olhada nos próprios relógios; se eles marcassem algo diferente de 8 horas, sabiam que tinham que acertá-los. O frei caminhou lentamente pelos corredores, até entrar na ala infantil – sempre começava por ela. Os casos eram os mais variados, e frei Alfons, apesar de se esforçar por parecer simpático, metia medo na maioria das crianças: seu corpo alto e branco, sua voz forte e seu sotaque pesado costumavam fazer alguns olhinhos se arregalarem de medo. Mas havia um garotinho ali que, ao vê-lo, já sorria – era Pedro, que praticamente morava no hospital , depois de sofrer uma queimadura provocada pela mãe. Sim, um dia a mãe dele  estava  derretendo banha; a  panela pegou fogo e, num reflexo, ela a  jogou  pela porta. Pedrinho  estava passando nesse momento, e teve quase o corpo todo queimado. Já estava em tratamento havia 2 anos, e ainda tinha um longo caminho pela frente.  Frei Alfons sempre trazia para ele algo para ler, o que aguçava ainda mais aquela imaginação sem limites.
Frei Alfons continuou em sua peregrinação pelo hospital; deu duas extrema-unções e viu, feliz, três pacientes receberem alta. Então, respirou fundo e rezou a Oração de Santa Gertrudes (sua santa de devoção)  pra encarar sua missão mais difícil: entrar na ala reservada para leprosos. Apesar de todos os conselhos médicos para não entrar naquela ala, o frei pensava em Jesus, lembrando-se de  Marcos 1,  40-42: “ Aproximou-se dele um leproso rogando-lhe, de joelhos: Se quiseres, podes purificar-me. Jesus, profundamente compadecido, estendeu a mão, tocou -o e disse-lhe: Quero, fica limpo! No mesmo instante, lhe desapareceu a lepra, e ficou limpo.” Ele sabia que suas mãos não iriam curar aquelas pobres criaturas, mas que, com sua palavra, podia trazer um pouco de conforto a seus corações. Passou por três portas e finalmente entrou num quarto com seis leitos. Havia nesse quarto apenas mulheres, quatro delas sentadas, uma andando para um lado e outro, e uma deitada. Essa, especialmente, causava piedade em frei Alfons: estando já em um estado adiantado da doença, sofrendo dores terríveis, trazia no ventre um bebê.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Ella Fitzgerald


A “Primeira Dama da Canção” nasceu em Newport News, no dia 25 de abril de 1917.  Notória pela pureza de sua tonalidade, sua dicção, fraseado e entonação impecáveis, também tinha uma  grande  habilidade de improviso .
Durante sua juventude Ella queria ser uma dançarina, embora gostasse de ouvir as gravações de jazz de Louis Armstrong,  Bing Crosby e The Boswell  Sisters e idolatrasse a cantora Connee Boswell.
De índole tímida, viveu para a música. Em 1993, afetada pelos problemas  causados pelo diabetes,  Ella Fitzgerald teve suas duas pernas amputadas. Morreu em 1996, em Beverly Hills, Califórnia, aos 79 anos de idade. Está enterrada no Inglewood Park Cemetery, em Inglewood. O material de arquivo da sua longa carreira está armazenado no Centro de Arquivos do Museu Nacional de História Americana, do Smithsonian.

Nada de novo sob o sol 6


Angelina tinha muito a fazer:  com a desconfiança – quase certeza – de que mais um bebê estava a caminho, precisava preparar o enxoval com capricho. Uma de suas maiores habilidades era bordar em ponto cruz. Quando saía com seus bebês –  Carmem,  com quase três anos, e  Clarinda, com um – todas as pessoas a elogiavam por seu capricho. E, como contava com uma ajudante em casa , tinha bastante tempo para bordar.
Sua vida era boa: embora o marido não fosse de conversar muito, e nem fosse carinhoso com ela e as crianças, não deixava faltar nada em casa. Para ela, era o que bastava. A única coisa que estava tirando seu sossego, ultimamente, eram umas manchas brancas que haviam aparecido em seu corpo. No início, logo que Carmem nasceu, ela notou uma pequena, entre o pescoço e o seio direito. Mas não deu importância. Só que o tempo foi passando e agora eram quatro, em diferentes partes do corpo.  Será que ela estaria com aquela doença que clareia a pele? Como era mesmo o nome? Lembrava-se de um menino que era chamado de Malhado pelas crianças da vizinhança. Vitiligo! Era esse o nome! Um arrepio percorreu seu corpo. Sabia que era bonita. Muito bonita: morena, cabelos longos e fartos, olhos amendoados e um furo no queixo que lhe dava um charme quase irresistível. Talvez por isso tenha se casado cedo: aos 16 anos, já era mãe. Agora, aos 19, poderia ter a mesma doença daquele menino, e talvez o marido não a quisesse mais. Talvez nenhum homem a quisesse mais. Procurou pensar em outra coisa.
O fogão ela mantinha aceso durante a maior parte do dia; sempre precisava  cozinhar ou esquentar algo para as meninas. Além disso, gostava de tomar um cafezinho várias vezes ao dia. Respirou fundo, colocou uma panela com água sobre o fogão e foi ver como estavam as meninas. Ficou olhando de longe - enquanto   a caçula  era ninada por sua ajudante,   Carmem já dormia gostoso. Seus olhos encheram-se de lágrimas por ser capaz de amar tanto. Sentia que morreria se ficasse longe de suas meninas.  Então, lembrou-se da água no fogo e foi passar o café. Enquanto colocava-o na xícara, no entanto, ouviu um choro alto e, na distração, derrubou café no braço, sobre uma das manchas. Estranhou o fato de não sentir dor, mas até achou bom. Foi atender Carmem, que acabava de acordar.

Nada de novo sob o sol 5


“Bastião, Bastiana, cadê a Bastianinha?”
Zinha tentou segurar o riso, mas foi inevitável. Era um homem bom, seu Manoel. Mas não tinha muita imaginação. Enquanto as irmãs e cunhados se abraçavam, Carmo corria beijar Lúcia, que era sua “ irmãzinha”, como ela dizia, apesar de haver apenas dez meses de diferença entre elas.  Manoelzinho e Paulo olhavam tudo com alegria, e não gostaram muito quando tiveram suas bochechas apertadas pelo tio. Enquanto os homens se acomodavam na sala e as crianças corriam para o quintal, as duas mulheres foram para a cozinha, onde Bastiana descarregou o que trouxe: o bolo, fofinho, e umas coisinhas que frei Alfons fez questão de doar:  um garrafão de suco de uva ,  uma massa de macarrão “preparrada” por ele e uns tomates.
Bastiana, apesar de ser amorosa, não era muito dada a carinhos, ao contrário de Bastião. Carmo sempre perguntava a ela por que não tinha irmãos, já que todos os amigos tinham . Bastiana simplesmente respondia: “Porque Deus não quis.” e encerrava o assunto. A relação entre as duas, na verdade, era um pouco complicada: Bastiana reclamava de tudo o que Carmo fazia, achava sempre que a menina podia fazer melhor.  Era justamente sobre isso que Bastiana falava agora com Zinha:
_ Bastiana, a Carmo é uma menina boa, ajuda você em tudo.
_ Sabe, Zinha, eu não sei, mas acho que nossos gênios não batem. Essa menina é muito difícil!
_ E você é fácil, né, irmã?
_ Fácil ninguém é! E você, como anda a vida?
_Indo, com dificuldade, mas indo. Os meninos estão bem, só o Paulo me preocupa. Tenho medo do que vai ser desse menino...
_É, você tem motivos pra se preocupar.
E, em meio a devaneios sobre a vida e o futuro, elas foram depenando as galinhas e preparando o almoço, que foi devorado duas horas mais tarde com um lamber de beiços sem fim. Se existia felicidade, era assim que ela era: com os parentes queridos, num almoço com direito a suco e  bolo de sobremesa!

Nada de novo sob o sol 4

Na  casa de Terezinha estavam todos agitados: Manoel já tinha matado duas galinhas e, como sempre, saíra correndo atrás das crianças com a cabeça de uma delas. Manoelzinho corria pelo quintal todo, seguido de Lúcia, que mais ria que corria. Paulo olhava aquilo e se divertia, acostumado que estava com suas limitações físicas. Quando tinha 2 aninhos,  teve uma meningite que quase o levara, e desde então carregava sequelas da doença.  Ele, no entanto, não se importava. A única coisa com a qual não se acostumava era ser chamado de troncho pelos meninos da rua. Mas um dia, um dia ele ainda ia ser doutor, e não ia admitir que ninguém o chamasse daquela forma.
Na cozinha,  Terezinha lavava umas verduras colhidas no quintal. Os móveis da casa toda eram feitos de caixas de verduras que Manoel recolhera em  suas andanças. A miséria era grande, e as dificuldades, muitas.  
Embora se sentisse feliz, de vez em quando Zinha fraquejava: trabalhava como empregada doméstica de segunda a sábado, e no domingo todo o serviço de casa a esperava. A patroa era uma espanhola muito brava, que não pensava duas vezes antes de humilhá-la; o marido, por sua vez, embora fosse um homem bom, gostava de tudo limpo e organizado.  Zinha achava que só iria descansar no dia em que morresse.  Enquanto lavava as verduras, o pensamento voou: imaginou a família chegando de Itu, e teve certeza da primeira coisa que o marido diria: “Bastião e Bastiana, cadê a Bastianinha?”  Sempre brincava com o fato dos cunhados terem o mesmo nome, e chamava Carmo de Bastianinha.
De repente, ouviu uma gritaria das crianças. Os três gritavam ao mesmo tempo: “Eles chegaram, eles chegaram”, numa euforia que fazia gosto.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 3

Bastiana estava atarantada: tinha levantado cedo, lavado a roupa de cama e a colocado para coarar.  Fazia questão de manter os lençóis branquinhos e cheirosos. O quintal, bem maior que a casa, tinha um gramado que Bastião cuidava pra que ela pudesse estica-los ensaboados pra receber o sol. A casa, humilde, Bastiana fazia questão de manter sempre arrumada e limpa. O chão, de tijolos, não era fácil de se manter limpo.  Embora tivesse apenas 7 anos, Carmo ajudava a mãe na casa como se fosse gente grande. A única coisa difícil para ela era passar roupa, porque seus braços magrinhos quase não conseguiam erguer o ferro. Ela mesma colocava a brasa, e fazia com muito cuidado, pois cansara de queimar as mãos nesse processo. A mãe deixava para ela as peças menores.
Depois de lavar a roupa, fazer a comida – com a maioria dos ingredientes colhidos no quintal, e uma galinha que o pai de Bastiana levara viva no dia anterior de presente – ela pediu à Carmo que lavasse a louça, enquanto ela batia um bolo para levar no dia seguinte à casa da irmã em Sorocaba. Bolo era uma raridade, lembrava festa, e Carmo não se cabia de alegria por viajar pra casa da tia. Eram muitas gostosuras: andar de ônibus, ver gente diferente,  encontrar a tia e os primos - que ela adorava e via muito raramente ...  Bastião quase nunca tinha férias, e o dinheiro mal dava pra passar o mês. Um passeio desses custava uns 3 meses de economia.  Então, aquela era uma ocasião realmente especial.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Marvin Gaye


 Marvin Pentz Gay  Jr.  nasceu em Washington, em 2 de abril de 1939. Foi um cantor popular de soul e R&B, arranjador, multi-instrumentista, compositor e produtor. Ganhou fama internacional durante os anos 60 e 70 como artista da gravadora Motown, com   sucessos como  "Stubborn Kind of Fellow", "How Sweet It Is (To Be Loved By You)", "I Heard It Through the Grapevine" e vários duetos com Tammi Terrell, incluindo "Ain't No Mountain High Enough" e "You're All I Need to Get By".
Gaye conseguiu o sucesso, mas nunca o reconhecimento e o  amor do pai, um pastor rígido, violento e ditador. Apegou-se profundamente à mãe, fonte de um amor incondicional, o que aumentava a fúria do pai .  Ele costumava dizer aos filhos: ” Da mesma forma que eu os trouxe ao mundo, posso tirá-los daqui.” Pessoa realmente excêntrica, Marvin Gay pai costumava vestir-se de mulher, o que fazia os filhos se sentirem ainda mais humilhados e confusos.  
Já famoso,  Gaye vicia-se em cocaína, e começa  a sofrer de delírios persecutórios. Compra  uma arma e a entrega  ao pai, para que o defenda  caso alguém queira  matá-lo. No dia 1º. de abril de 1984, após uma discussão entre os dois, o pai ironicamente  pega  essa mesma  arma e tira a vida de Gaye.  Cumpre-se, assim, a profecia familiar.

sábado, 7 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 2


Frei Alfons era um homem de princípios rígidos e riso contido. Ao acordar, fazia suas orações, tomava um banho gelado e sentava-se à mesa para tomar o café, que Sebastião já havia preparado - todos os dias, um ovo cozido e um café bem forte, sem açúcar. Bastião não conseguia entender "as esquisitices" do padre, mas  sua fé de homem simples o fazia servi-lo  com zelo e devoção. Já estava naquele emprego há muito tempo, desde que perdera a avó, único parente que conhecera neste mundo. Era um tipo de “faz-tudo”: preparava o café, consertava o que havia pra ser consertado,  mantinha a pintura da igreja, e o que mais gostava: cuidava do jardim. O jardim da casa paroquial era o mais lindo da cidade – pelo menos, era o que ele achava. Embora o espaço não fosse tão grande como ele gostaria, fez questão de cultivar as mais variadas flores  e folhagens; seu orgulho era um arbusto-borboleta, que fazia as senhoras da vizinhança darem uma paradinha cada vez que passavam a caminho do armazém ou de outro lugar qualquer. Havia um  ipê amarelo, que esperava a proximidade da primavera pra florir,  e um limoeiro que era o xodó do padre –  essa era a única parte do jardim que era cuidada por ele,  junto com um canteiro de ervas e temperos que ele chamava de “tesorros”, no seu português cheio de sotaque.
Frei  Alfons  gostava de sentar-se na varanda todo final de tarde e, às vezes, antes de dispensar Bastião, contava histórias de sua infância  em Bedburg, que Bastião não sabia onde ficava, mas sabia ser longe. Quando frei Alfons chegou,  Bastião estranhou o jeito sério; afinal, frei Antônio, o pároco anterior, era do tipo brincalhão e risonho. Conviveram diariamente durante quinze anos, até que uma pneumonia  levou o frei num dia triste de inverno. Bastião chorou como quem perde um pai.
 Então, um mês depois, enviaram frei Alfons.  No início, Bastião falava o indispensável com ele, temeroso de ser inadequado. Além disso, tinha uma dificuldade enorme de entender aquele jeito de falar todo enrolado. Bastiana o acalmava, e dizia que o tempo iria resolver as coisas. E resolveu; Bastião acabou se afeiçoando àquele homem grande e branco que nunca sorria. E  percebeu que, por trás daquela carranca, havia um grande coração.



sexta-feira, 6 de maio de 2011

Nada de novo sob o sol 1

Corria o ano de 1916. O frio congelava os ossos naquela manhã de junho. No dia anterior, a rádio anunciava que havia geado em todo o estado de São Paulo. A mãe tentava manter a  filha de 22 dias aquecida junto ao corpo, já que cobertor havia um só. Pelo menos essa vantagem a pobreza trazia: pais e filhos tinham que ficar juntinhos, para que se aquecessem mutuamente.
O dia já estava clareando, e Bastião acabava de se levantar. Deixava que a mulher dormisse, e ele mesmo preparava o café.  Tinha pena dela, que estava ainda cansada do parto complicado e dos cuidados todos que um bebê requer. Além disso, o serviço doméstico era puxado, e ele sabia que o dia da mulher seria longo, mais do que o seu.  Levantou-se e, com seu jeito bonachão, preparou-se para sair. Bastiana ouviu o barulho do marido  e, embora quisesse permanecer na cama, não conseguia. Sempre fora assim: uma vez de olhos abertos, estava em pé. Levantou-se a tempo de dar bom dia ao marido e vê-lo partir.
Pelos seus cálculos, ainda teria um tempo antes de Maria do Carmo acordar. Ela havia mamado fazia umas 3 horas. Respirou fundo e sentou-se à mesa, pensando em como sua vida havia mudado nos últimos meses: a gravidez não planejada, a gestação conturbada, o parto que quase a matara. Agora, tinha aquele embrulhinho sobre a cama, e tudo a assustava. Na verdade, desde que o bebê nascera ela não conseguia relaxar. Tudo a preocupava: se a filha chorava, se ficava muito quietinha... Lembrava-se sempre das palavras da mãe: "Bebê é como passarinho, numa hora está vivo, noutra está morto." Seria assim mesmo?
 De repente, um chorinho a trouxe de volta à realidade. Carmo havia acordado. Correu para o quarto, e encontrou sua filha com os olhos abertos, mas ainda perdidos na escuridão.  Pegou-a e percebeu que os panos que a enfaixavam do pescoço aos pés estavam encharcados. Despiu-a com cuidado, para que não sentisse muito frio, e a enrolou novamente. Sentia um amor que não sabia definir, nem de onde vinha. Só sabia que era bom.